terça-feira, 19 de agosto de 2014

Salamanca do Jarau, a lenda e o vinho


Adoro vinhos que contam boas histórias. E gosto também de contá-las, como as da Routhier & Darricarrère, lá da Campanha Gaúcha, uma vinícola que valoriza as histórias como forma de perpetuar a cultura através do vinho. Ano passado eles nos apresentaram o vinho Red, com sua simpática Kombi vermelha no rótulo, que contou a trajetória da vinda da família ao Brasil, trazendo para o mundo do vinho o espírito da aventura, da juventude e da descontração.


Agora chega um respeitável Cabernet Sauvignon para contar mais que uma história, mas uma das tantas lendas gaúchas, a do Salamanca do Jarau, documentada pelo escritor pelotense João Simões Lopes Neto.


A lenda harmonizou perfeitamente com este vinho, concebido dentro de uma filosofia que o produtor de origem francesa, Anthony Darricarrère, chama de terroir extremo. Isso quer dizer que o vinho foi elaborado com mínima intervenção para revelar, da forma mais autêntica possível, os aromas, sabores e encantos deste terroir tão especial que é o da Campanha Gaúcha. Para mim é vinho que traz a pura expressão e a raça deste chão, com marcados traços terrosos e sanguíneos mesclados a frutas vermelhas bem maduras e aos toques típicos de couro do vinho gaucho. Pode até parecer algo bem rústico, mas posso garantir que é de uma elegância e personalidade incríveis.

Vinhedos Routhier&Darricarrère
Foto: Maria Amélia Duarte Flores

As uvas, provenientes de um único vinhedo, o mesmo do já tradicional Província de São Pedro, tiveram fermentação espontânea por ação das leveduras indígenas, aquelas presentes na casca da uva, que dão tons do terroir ao vinho. A passagem por barricas velhas deu acabamento refinado, que a gente sente num paladar de taninos macios combinados a álcool moderado de apenas 12,5% e acidez que deixa a boca fresca e pede outra taça. Termina deixando o mesmo amarguinho gostoso quando a gente bebe um bom chimarrão.


A lenda do Salamanca do Jarau foi também inspiração para a criação dos rótulos, assinados pelo artista gaúcho Gelson Radaelli. Além de consagrado artista, Gelson tem também um pé na cozinha e paixão pelos vinhos. É proprietário do tradicional restaurante Atelier de Massas, em Porto Alegre, onde divide espaço com uma galeria de arte. Empolgado com o projeto, pintou 30 quadros retratando a lenda, dos quais quatro foram escolhidos para ilustrar os rótulos. As pinturas tem jeito de arte rupestre, perfeitas para representar um vinho tão natural, integrado a cultura e as características naturais deste lugar que é extremo terroir do Brasil.


E afinal, o que diz a lenda que inspirou este vinho? Quem vai nos contar é o jornalista gaúcho Rogério Ruschel, editor do In Vinho Viajas, blog de enoturismo, cultura de vinho e turismo de qualidade, e que tem leitores em 98 países. O Rogério morou na Serra Gaúcha e também na Campanha, e como temos em comum o gosto pelo vinho e pelas boas histórias do vinho brasileiro, decidimos contar juntos este misto de história e lenda.



Com a palavra, Rogerio Ruschel.

“Amigo ou amiga, boleia a perna, puxa um banco, e vá sentando; pega o mate e escuta: vou te contar uma bela história. O Rio Gande do Sul é um dos estados brasileiros que melhor preserva suas tradições históricas e culturais - as tais raízes. Os gaúchos tem um linguajar próprio - com dicionários especializados -, comemoram a sua “independência” do Brasil entre 1835 e 1845 conseguida na Revolução Farroupilha, e mantém uma rede de clubes que funciona como embaixadas destas tradições, os CTGs – Centros de Tradição Gaúcha.



Nos CTGs - que são centenas em todo o país e até mesmo no exterior - são relembradas não só a música e a culinária tradicionais, mas também as muitas lendas que os gaúchos tem – e lendas, meu prezado, são histórias do território contadas pelo seu povo para fazer a autobiografia. João Simões Lopes Neto, escritor e empresário gaúcho falecido em 1916, organizou as lendas gaúchas em livros que receberam o prestígio de literatura “maior” da Editora Globo, através do apoio intelectual de escritores brasileiros do primeiro time como Érico Veríssimo e Augusto Meyer. Aliás, a lenda da Salamanca do Jarau registrada por Lopes Neto em 1913 inspirou Érico Veríssimo a escrever o trilogia do célebre romance “O Tempo e o Vento” que já virou filme, série de televisão, peça de teatro, peça de balé e até mesmo história em quadrinhos. Quer dizer: agora a Salamanca do Jarau inspira também um vinho...



Mas vamos à história. A Salamanca do Jarau conta a estória de uma princesa moura que séculos atrás teria vindo dentro de uma urna da cidade espanhola de Salamanca, quando caiu o último reduto árabe na Espanha, disfarçada como uma bruxa velha para não ser reconhecida. Chegando ao sul do Brasil com outros cristãos novos, foi transformada em uma lagartixa com cabeça de rubi por Anhangá-Pitã, o Diabo Vermeho dos índios, e foi morar em uma caverna no Cerro do Jarau, município de Quaraí, no Rio Grande do Sul, perto de uma lagoa.  Veja abaixo a princesa-lagartixa e na outra foto o Cerro do Jarau ao fundo e atreas dos gauchos.



Um dia o sacristão da igreja de uma aldeia próxima, que ficava no Povoado de São Tomé, na Argentina, do outro lado do rio Uruguai, foi até a lagoa se refrescar quando Teiniaguá surgiu e foi aprisionada por ele em uma guampa. Durante a noite, ao abrir a guampa, acontece uma magia: ela voltou a ser uma linda princesa, pediu um cálice de vinho – que ele roubou do padre – e eles beberam e fizeram amor a noite inteira. Para encurtar a história, meu caro amigo, o casal fez isso durante várias noites (veja imagem abaixo) até que um dia o padre desconfiado do sumiço do vinho os surpreendeu no quartinho da sacristia. Ela voltou a ser uma lagartixa e foi morar numa barranca na beira do rio Uruguai (que é o rio que faz a fronteira do Brasil com a Argentina e também com o Uruguai), e ele foi preso.



O sacristão foi condenado à morte, mas no dia da execução Teiniaguá voltou fazendo enormes valos na terra, o salvou utilizando magia, e o casal fugiu indo morar em uma caverna profunda, chamada de Salamanca do Jarau (Salamanca quer dizer “gruta mágica”), de onde só sairiam quando surgisse alguém capaz de cumprir sete provas, assim, tipo Hércules. Não vamos entrar em detalhes agora, mas fique sabendo, caro leitor, que o feitiço foi quebrado muitos anos depois por um gaúcho chamado Blau (que já faz parte de outra lenda) e os dois condenados, transformados em um belo casal de jovens, se casaram e geraram a população indigeno-ibérica do Rio Grande do Sul.  Lenda é assim mesmo, caro amigo: mágica como o vinho da Routhier & Darricarrère, lá da Campanha Gaúcha, que agora podemos beber sem medo de virar lagartixa.”


Para conhecer a vida e obra de João Simões Lopes Neto acesse http://www.joaosimoeslopesneto.com.br


Rogerio Ruschel é jornalista, gaúcho e editor de In Vino Viajas http://invinoviajas.blogspot.com.br/  

3 comentários:

Rogerio Ruschel disse...

Beleza de post, beleza de parceria. Um abraço, Sonia

Madame do Vinho disse...

Verdade Rogerio, uma beleza de parceria. Adorei fazer este texto junto contigo. Obrigada!
Abração

jupiter disse...

Fala-se tanto de híbridos, como sinónimo de baixa qualidade. Não será por acaso o cabernet de sauvignhon um hibrido, tal como os pinotage etc.?